sexta-feira, 11 de junho de 2021

Diário de Bordo - Dia 2

 


Ensina-me a morrer,

Rápido mas de mansinho,

Achar sem muito sofrer

O fim breve do caminho.

Ensina-me a acabar

Com todas as ilusões,

Não ter mais com que sonhar,

Nem desejar mais tostões.

Ensina-me a conhecer,

O outro lado da vida,

A outra forma de viver

Que está para lá da partida.

Ensina-me a encontrar

O caminho da eternidade,

O juiz para me julgar,

No momento da verdade.

Ensina-me a conseguir

A atingir o apogeu,

Que rumo hei de seguir

Para ir do inferno ao céu.

Ensina-me a apagar,

Todo o rasto que deixei,

Em cinza o fogo tornar

O corpo que habitei.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Diário de Bordo - Dia 1

Quero ser nascente de água,

Fio líquido descendo

Pela encosta da montanha.

Tornar-me desde riacho,

No ribeiro que se despenha

Em ti ribeira que aguarda,

A minha chegada em sanha.

E depois tornar-nos rio,

Correndo de braço dado,

Tendo o mar como destino.

Determo-nos só em barragens

Descansando das correrias,

Por entre pedras e galhos

Em cursos largos e fundos

Ou só pequenos atalhos,

Desvios e reencontros,

Trazendo no nosso leito,

Vida vária criada

Quase a partir do nada.

E saltando das barragens

De novo um só regato,

Vamos juntando outros mais,

Ou nós a eles juntando,

Embalando em alguns cais

Os barcos, que descansando

Se preparam ansiosos

Para o momento engano

Em que indo, pensam que vão,

Quando logo estão chegando.

E quando já repousados

No mar que era destino,

Sermos em vapor levados,

Formando nuvens no céu

Que formado o escuro véu,

Nos largam lá das alturas,

Sem sentirem amarguras

Por nos irem sepultar,

Pois tudo vai recomeçar.

 

 

 

Diário de Bordo

 


Diário de bordo. – Início da viagem.

Hoje vou iniciar uma viagem, que não sei onde me levará. Nâo é uma viagem física, antes uma tentativa de registar sentimentos e vivências do que ainda está para vir, em forma de poemas ou pensamentos. Nem será bem um diário, pois a escrita será esporádica e espaçada sem regulardidade. Podem haver dias seguidos nesta viagem sem qualquer registo ou com registos. Vou tentar imaginar que o fim desta viagem coincida com outro fim e tentarei falar, também, daquilo que gostaria de ver, ser, sentir ou fazer antes dele ser atingido,

Será uma viagem solitária?

Talvez tu me acompanhes nalguns dias, ainda que só na minha imaginação.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Distrações

 


Distraí-me a desenhar corações na areia, com flechas oblíquas. De um lado a minha inicial, do outro  o teu N. As ondas vinham apagar tudo com os seus dedos de espuma e eu refazia-os, cada novo coração mais perfeito que o anterior. Tentava que tu percebesses que o nosso amor podia ser melhorado, aperfeiçoado, independentemente das vezes que  sofresse ou que parecia desaparecer. Cada vez que a vida usasse dedos de espuma, quase invisíveis, para apagar o nosso amor, nós iríamos continuar a tentar aperfeiçoá-lo. Foi então que dei conta de que já não estavas a meu lado. Não soube dizer-te que estava a fazer aquilo por nós e tu simplesmente pensaste que não eras importante na minha vida ao ponto de saíres sem eu dar conta. E de facto assim foi; por tanto te querer fui-te perdendo. A culpa foi minha, não te expliquei o que tentava fazer e tornou-se um esforço de uma pessoa só. Talvez se te tivesse explicado o que estava a fazer, tu construísses barreiras de areia que impedissem a água de apagar os meus desenhos, protegendo-os, protegendo-nos...

terça-feira, 13 de abril de 2021



Não posso perder as correntes que prendem o choro, porque os rios transbordam com  a falta de abertura das comportas que comportam o sentimento incomportável, separadas pelas margens de um oceano insensível às feridas que provoca nas marés. Não ponho os pés na areia sem lembrança de que cada grão de areia da praia está milionarmente ligado aos outros que vão até à tua praia, onde o mesmo mar toca os nossos pés separados por quilómetros de tristeza. (tristeza que é só minha)! Se perco as correntes do choro, rebentam os diques dos olhos que já não veem senão o passado que desapareceu, sem esperança de que se sebastianize. Somos um gota de vento num sopro da nuvem, revoluteando na insensibilidade do suceder dos dias, gotejando em paralelo infinito numa intercessão impossível. Foi ontem que os nossos destinos se perpendicularizaram e só se cruzaram na origem, sem função afim ou ponto de coordenada comum. Não me tornei abcissa a que correponda a tua ordenada.

Sorrio! As correntes do choro prendem-se com sorrisos, ainda que forçados, alguns tão frágeis que permitem que ele se liberte e se lance em torrente. O caminho do choro não é um arroio suave! É uma corrida de rafting embatendo em rochas pontiagudas, em paus aguçados, em pedras submersas, num bote insuflado pela desilusão, material que nunca fura nem rasga, como as rodas sólidas de um triciclo onde pedalámos os nossos sonhos em criança.

Quando nos cruzámos, imaginámos traçar duas retas sobrepostas, como se formassem uma só, tão ingénuos como os quadros pintados nas creches e primárias, mas para issso era necessário que viajássemos à mesma velocidade-luz, que, segundo dizem, é aquela que mede o tempo em que Sol demora a iluminar o teu rosto, na primeira vez que ele me deixou contemplá-lo. Porém eu viajava um nanosegundo desencontrado e perdi-me na imensidão inexata do Universo futuro que pretendia coabitar contigo.

Quando sorrio finjo que não choro!

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Borracha do tempo




O tempo tudo leva,
Tudo tira,
Tudo apaga,
Somente o esquecimento nos afaga.

Se isso fosse assim, que bom que era!
Dormia todo o dia descansado,
Todos os anos só tinham primavera,
Os meus invernos ficavam no passado.
Se isso fosse verdade, maravilha!
Um coração virgem cada dia,
Não ter o meu fechado numa ilha,
Não ter tristeza, somente a alegria.
Se tal acontecesse, que fantástico!
Os mortos desapareciam num instante,
A dor não era feita de elástico,
Que  estica mas nunca está distante.
Se o tempo fosse uma ferramenta,
Usada para o ido apagar,
Não tinha esta saudade que se alimenta
Do tempo que vai passando, sem passar.

O tempo tudo leva,
Tudo tira,
Tudo apaga,
Somente o esquecimento nos afaga.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Sinos fendidos



Vão tocando os sinos
A  mesma canção
Chamando os  meninos
Para a oração.
Hoje não me apetece,
Não quero rezar,
Pois nenhuma prece
Me muda o azar.

Estou farto  de Pai-Nossos,
Das Avé Maria ,
São iguais os almoços ,
A mesma monotonia.
Já basta de Glória,
Ou Atos de Contrição,
Nada dá a vitória
Na luta do coração.

O padre acena
À porta da igreja,
Mas a minha cena
Não é Assim Seja.
Beatas rezando
Por todas as almas,
Estou-me borrifando
Com todas as calmas.
Já são tantos anos
Pedindo, implorando...
E os desenganos
Não passam orando.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Perdição



Perco-me de cada vez que te procuro,
Sinto-me perdido cada vez que te descubro,
É na distância que me sinto mais seguro,
É no esquecimento que tolhido eu  me cubro.
Perco-me nessa tua inexistência,
Como estrela, na galáxia, já extinta,
Brilhando, sendo vista no futuro,
Pequena luz que é só vista no escuro.
E fico na penumbra que é a sombra
Da loucura que existiu e preencheu
Todo o universo embrenhado no teu corpo,
A via láctea escondida  sob o céu.

Perco-me por ser  teu ...

Ainda há memórias que restam  escondidas,
Projetos desenhados sem medidas,
Construções que não cabem no papel,
Um  mundo construído em carrossel,
Pequenas utopias encantadas,
Roçando-se nas nossas ilusões,
Ou são quimeras pelo tempo inventadas,
Brincando com as nossas emoções?

Ainda há sonhos que permanecem acordados
Alheios aos ponteiros do destino,
Aguardam por um dia, enganados,
Ter  um encontro de pleno desatino.

Perco-me nessa busca infindável,
De me encontrar em ti todos os dias,
Sabendo que a ausência é inevitável

E a perdição é feita de agonias.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Ocultos

Ocultam-se os pensamentos
Escondidos da razão,
Brincando às escondidas
No real da ilusão.
Quem vem lá?
Pergunta o medo
Armado em valentão,
Temendo que o seu segredo
Se descubra num arremedo
De malvada confissão.
É tão grande a confusão!
Mistura-se o que se perde
No ganhar que não se guarda
Quem não perde, só aguarda
Que se apague o coração.
Quem vem lá? pergunta a medo
A pacífica existência
Que se acomoda no tempo
Temendo que a inocência
Tenha desejos revoltos
Abanando os alicerces

Dos medos que não estão soltos.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Idealista




Chamas-me idealista,
Mas não sou nenhum artista,
Escrevo só  coisas banais.
São mais mágicos os teus ais,
Se no meu leito deitada,
Deixando a noite esgotada.
Tu és uma malabarista
Que equilibra na pista
Que o destino te deu
O meu inferno; o meu céu.
Nem sabes quanto iluminas
Os meus desejos traquinas,
Nem quanto me incendeias
Ao imitares as sereias
Sussurrando-me no breu:
"Quero ter um filho teu!".
Chamas-me de idealista,
Por desejar como autista
Os impossíveis de ter,
È mais fácil perecer
Os meus desejos cansados,
Senti-los abandonados...
Encantas-me com teus segredos,
Envolves entre os teus dedos
As teias do meu destino,
Torno-mo inseto-menino
Quando dizes com ardor:
"Faz-me um filho, por favor!".

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Refeição


Vou comendo o mundo com os olhos, e a saudade sentada junto a mim, à beira-mar. Vou-me alimentando com essa refeição ocular de cores: o mar saltitando nas rochas e deixando um rasto espumoso de leite, o rio entrando nesse mar, verde das algas, terminando a sua viagem misturando-se com o azul e branco. Vou-lhes sentindo os cheiros, aqui nesta falésia que limita o avanço deste corpo que se alimenta pelos olhos, enquanto a saudade se senta ao pé de mim. Desço até à areia e deito-me junto à ausência do teu corpo onde a saudade se deita também. Os meus olhos vão comendo o mundo e eu nunca fico saciado. Fecho-os numa pausa alimentar. Corpo e alma em digestão conjunta. Largo-me aqui, exaurido, esperançado  que esta refeição me retempere as forças e me reencoraje.
Sei-te em qualquer lado! Assim mo disse a saudade, essa minha companheira de jornada. Está aqui, já to disse, deitada na areia a meu lado, no lugar que devia ser teu, no mesmo sítio da tua ausência. Faz-me companhia…
Sei-te… Sinto-te, como sinto esta brisa que passa por mim e me eriça os pelos. Cheiro-te também, nos mesmos cheiros que me trazem momentos conjugados e sabores que quero repetir. Imagino-te parte desta refeição. Entrares em mim através dos olhos... Mas para isso era preciso que saísses de mim, pois tu estás sempre presente, ainda que a saudade de ti me acompanhe. Contraditória esta sensação... Vives comigo e estás ausente. És parte de mim mas não estás aqui. Sinto-te, mas sinto com mais força a tua ausência.
Vou comendo com os olhos o mundo. A minha voracidade é enorme e a fome de ti nunca se acaba.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Homeless


São estreladas as noites
Quando as nuvens não acordam,
Este quarto a céu aberto
É todo meu, se concordam.
Tanjo às vezes um bandolim
Ou um órgão desafinado,
Por companhia um mastim,
Cão de rua arraçado.
Meu colchão é de papel,
Ou de cartão apanhado,
A rua é o meu hotel,
O meu quarto em qualquer lado.
Trabalho por uns tostões
P'ró tabaquito ou p'ró charro,
Bebo vinho aos borbotões
Enquanto arrumo um carro.
Possuo o mundo em redor
Mesmo não tendo dinheiro,
Afastam-se todos de mim...
Será de medo ou do cheiro?
Vivo ao pé de tanta gente,
Vagueio na multidão,
Quem me vê já não me sente,
Acompanho a solidão.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Imperdoável




Já é tarde quando chegas,
Nem sabes por onde andaste,
Trazes no hálito a noite;
Dás-me ciúme e açoite,
Fazes de mim o teu traste.
Já é tarde quando chegas.
Quisera que não viesses;
Bebes tanto que até negas
Viveres a vida aos esses.
Novo dia, velho dia,
Desculpas de cordeirinho,
Prometes não repetir,
Da bebida vais fugir,
A tua culpa é do vinho.
Já é tarde quando chegas.
Quisera que não viesses;
Bebes tanto que até negas
Viveres a vida aos esses.
Uso bases, uso cremes,
Disfarço as nódoas com calma.
Desculpo-te as contusões,
Só não esqueço as lesões
Que me fizeste na alma.
Já é tarde quando chegas.
Quisera que não viesses;
Bebes tanto que até negas
Viveres a vida aos esses.
Não tenho para onde ir.
A bebida tudo leva.
Mesmo que queira fugir
Tenho medo de cair
No meio de tanta treva.
Quem me acode, quem socorre,
Quem me tira do sufoco?
Vivo tão amargurada,
Sinto-me tão abandonada
Na dependência de um louco.
Quero morrer pouco a pouco.
Mata-me de uma assentada.
Não me importas em nada,
Já nem sinto a bofetada
Nem ouço teu grito rouco.
Já é tarde quando chegas.
Quisera que não viesses;
Tuas casas são adegas,
Tomara que nelas morresses.