domingo, 2 de março de 2008

Negrume

As lágrimas falam de sonhos maus,
Do papão que vive no meu peito,
Do meu horizonte sem as tuas naus,
Das dores que dormem no meu leito.
Grita-me a voz enrouquecida,
Chamando insistente a razão,
Manda que te faça enraivecida,
Para acabares com a minha ilusão.
Tenho de ser assim amargo e duro,
Despertar em ti negras vontades,
Erguer entre nós dois tamanho muro,
Que me devolva as minhas liberdades!
Choram as palavras que te escrevo,
Sofrem persistente desespero,
Obrigam-me a escrever-te o que devo,
Impedem-me de escrever-te o que quero.
Mandam-me fazer com que rejeites,
Tudo o que eu tenho p’ra te dar,
Jamais permitir que tu aceites,
Esta forma tão azeda de amar.
São tão cruéis e vis estas sentenças,
Que me forçam a negar tua amizade,
Opõem-se firmemente a que pertenças
À minha dolorosa e triste realidade.
Mas o queria a sério era ir,
Deixar-me levar pela insensatez,
Vaguear eternamente, daqui fugir,
Perder todos os sonhos duma vez.
O que queria mesmo era sair,
De dentro deste corpo assombrado,
Deixar este lugar, logo partir,
P’ra onde nunca fosse encontrado.
O que desejo mesmo de verdade,
Nem mesmo a ti o posso confessar,
É tão forte e secreta essa vontade,
Que só a mim me atrevo a contar.
E peno de mim mesmo arrependido,
Culpo-me das dores que te provoco,
Mas só assim é que pode ser vencido,
Este sentir em mim que me faz louco.
Culpo-me de não ser quem tu desejas,
Culpo-te de não me quereres soltar,
Acuso-me de fingir que tu me beijas,
Cada vez que me perco a sonhar.
Sinto-me de tal forma enfeitiçado,
Que chego a desejar a quem tu amas,
A mais cruel das dores, um mau-olhado,
Que te impeça de partilhar as suas camas.

Christian de La Salette

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